O mundo mudou e o vento levou: por que devemos rever os clássicos

Redação Ecomunica

24 Novembro 2021
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Qual o problema com “...E O Vento Levou”? O épico de 4 horas, que conquistou 8 Oscars na cerimônia de 1940, segue sendo o filme mais lucrativo da história e é, inegavelmente, um sucesso. Tanta pompa, no entanto, não foi suficiente para manter o filme no catálogo do serviço de streaming HBO Max. “As representações raciais [do filme] são erradas à época e são erradas hoje”, a plataforma explicou à revista Hollywood Reporter.

Para entender melhor a treta, aqui vai um panorama geral do filme. Scarlett O’Hara (Vivien Leigh) é a heroína desse drama sobre o impacto da Guerra Civil americana nas famílias escravocratas do sul dos Estados Unidos. Ao longo do filme, acompanhamos Scarlett em seus esforços de manter a fazenda da família viva, sempre assistida por escravos subservientes e felizes em ajudar sua senhora. 

Interpretada por Hattie McDaniel, a personagem Mammy é o exemplo mais clínico da representação higienizada que o filme faz da escravidão. A empregada e babá de Scarlett, que não tem história para além de sua lealdade pela protagonista, rendeu a McDaniel o Oscar de Melhor Atriz Coadjuvante. No entanto, o teatro onde a cerimônia ocorreu naquele ano era segregado, e a atriz não pôde assistir à entrega de prêmios junto a seus colegas de elenco. 

À época do lançamento, “...E O Vento Levou” era tido por muitos como uma obra progressista. A história liderada por uma personagem feminina complexa e com personagens negros que não eram interpretados por pessoas brancas com o rosto pintado encantou os críticos. Mas oposições àquele retrato oco da negritude já pipocavam na época, com o jornal ativista The Chicago Defender chamando a película de “uma arma de terrorismo contra a América negra”. 

Mas foi só 80 anos depois, com a morte de George Floyd, a força do movimento global Black Lives Matter (Vidas Negras Importam) e a tensão aplicada por ativistas — por exemplo, o roteirista John Ridley escreveu uma carta à HBO Max explicando por que o filme deveria ser retirado da seleção —, que essas problemáticas foram revistas. 

Assim como a produção de “...E O Vento Levou”, que contratou consultores caucasianos para avaliar o tratamento que o filme fazia da negritude, ainda hoje é comum a propagação do discurso negro através da ótica branca. Não é assim que se promove o antirracismo. O fato de as marcas estarem despertando apenas agora para questões como essa é um claro indício de uma crise de representação, que não ocorre só em Hollywood. 

O (tardio) despertar das marcas

A tradicional empresa do setor de limpeza, Bombril, anunciava há décadas a sua esponja de aço, chamada “Krespinha”. Mas, recentemente, o nome do produto, que faria associação da palha de aço com cabelos crespos, comuns em pessoas negras, incomodou muito nas redes sociais, e com razão. “Chamar o cabelo de meninas negras na escola de Bombril era muito comum como ofensa. Então, meninas negras ressignificaram a palavra: passou a ser cabelo crespo”, pontuou a âncora da CNN Luciana Barreto, em transmissão ao vivo. 

“Mesmo sem intenção em ferir ou atingir qualquer pessoa, pedimos sinceras desculpas a toda sociedade”, a Bombril disparou em seu mea-culpa. Explicou ainda que não se tratava de um lançamento, e sim um produto que já existia em seu catálogo há quase 70 anos. Além disso, a tal esponja seria retirada do portfólio da marca imediatamente.

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Comunicado oficial da Bombril após acusações de racismo nas redes sociais que fizeram a marca retirar a problemática "Krespinha" do mercado. (Divulgação)

Perguntas que surgem de imediato: por que esse produto ainda estava no portfólio da empresa? Não havia uma pessoa em algum dos estágios dessa campanha para indicar o racismo explícito?

Produtos americanos passaram por processos parecidos. A Quaker Oats Company, fabricante do xarope para panquecas Aunt Jemima (Tia Jemima, em português), admitiu que a mulher retratada em seu logotipo tem origem em um estereótipo racista (provavelmente o estereótipo da mammy, sobre o qual falamos no início deste texto). O xarope Aunt Jemima está no mercado há cerca de 130 anos. 

Agora, a identidade visual do produto vai passar por uma revisão, já que seu fabricante acredita que “para progredir em direção à igualdade racial por meio de várias iniciativas, também devemos examinar com atenção nosso portfólio de marcas e garantir que elas reflitam nossos valores e atendam às expectativas de nossos consumidores”. 

Progredimos bastante em todo esse tempo, mas alguns dados sugerem que ainda não fomos longe o bastante. Em um estudo realizado pela consultoria Elife e pela agência de comunicação SA365 descobriu-se que a publicidade nas redes sociais, em 2019, foi 87% composta por pessoas brancas, com apenas 34% das peças retratando pessoas pretas (a pesquisa levou em conta a presença de ambas as raças simultaneamente). Por sua vez, grupos indígenas não apareceram em nenhum anúncio.

O cerco fechou também para outras empresas, como os fabricantes do arroz Uncle Ben’s e do mingau Cream of Wheat, que já anunciaram o rebranding de suas marcas, prometendo eliminar as referências de subserviência negra de seu logotipo. 

Mudanças proativas

Enquanto alguns só se mexem quando o público entra em ação e o medo do “cancelamento” fala mais alto, percebemos iniciativas proativas de outros, como a campanha #CriadoMudoNuncaMais, encabeçada pela Etna, líder no setor de Casa e decoração, para anunciar o fim do uso da palavra ‘criado-mudo’ em seus catálogos. O comunicado ainda enfatiza: “Dois séculos depois, sem nos dar conta, ainda carregamos termos racistas como esse, mas sabemos que é sempre tempo de mudar e evoluir”. Esse movimento levou outras lojas a fazer o mesmo

Atualmente, a HBO Max disponibiliza ...E o Vento Levou em seu catálogo, mas com um material de discussão sobre o filme para contextualizá-lo. E, por meio de representantes, anunciaram: “Se quisermos criar um futuro mais igual, justo e inclusivo, primeiro temos que reconhecer e compreender a nossa história”.

Sem sombra de dúvida, rever, ressignificar, contextualizar ou mesmo mudar os clássicos se tornou urgente, mas não é coincidência que tantas marcas, nacionais e internacionais, precisem e estejam passando por essas revisões profundas. O consumidor está alerta aos valores sociais que as marcas pregam, verificando se estão alinhados aos seus. Seria esse o espírito dos nossos tempos? Esperamos que sim! 

Redação Ecomunica

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